A tentativa de autoridades chinesas de contornar a crise do coronavírus ameaça se transformar em uma crise política e vê a OMS sob o risco de sofrer um duro golpe em sua credibilidade.
Sem alardes, a entidade de saúde em Genebra enviou um comunicado nesta segunda-feira indicando que, de fato, o coronavírus representava um “elevado” risco global. Numa nota de rodapé do informe, a OMS explicava que houve um “erro” nas versões anteriores dos documentos emitidos nos últimos dias. Em todos, o risco global era considerado como sendo “moderado”.
Na nova versão, o risco é considerado como “muito elevado” na China, “elevado” na Ásia e “elevado” em termos globais. Ao explicar a mudança, a OMS se limitou a dizer que se tratava de um “erro” no uso da palavra anterior.
A emergência global, porém, ainda não está decretada. Mas, nos bastidores, a mudança na avaliação foi recebida com muitas críticas. Por anos, a OMS tem sido atacada por ter dado um resposta lenta para algumas das principais epidemias, entre elas o do Ebola no oeste africano.
Os primeiros sinais do Ebola surgiram em dezembro de 2013. Mas não foi até março de 2014 que a OMS decidiu reconhecer que o problema existia. Documentos confidenciais da entidade ainda revelaram como o escritório africano da OMS dificultou o trabalho dos especialistas internacionais e como, em maio de 2014, a entidade chegou a declarar aos jornalistas que o surto estava praticamente controlado.
Dezesseis meses depois da eclosão do pior surto de Ebola da história, a entidade apresentou uma espécie de desculpas ao mundo pela desastrosa resposta à doença, reconhece que falhou e prometeu promover uma ampla reforma da entidade que hoje vive um sério golpe em sua credibilidade.
Para os críticos, o mea-culpa vem tarde demais para milhares que perderam suas vidas e países que foram colocados de joelhos. 10,6 mil pessoas morreram por causa do vírus e 25,7 mil pessoas foram contaminadas no oeste da África. O Produto Interno Bruto (PIB) de Serra Leoa, Guiné e Libéria desabou e a reconstrução dessas economias pode levar uma década.
Mas a contaminação política voltou ao centro do debate em 2020. Na semana passada, a OMS precisou de dois dias de encontros e sete horas de debates para anunciar que era “cedo demais” para declarar uma emergência sanitária global por conta do coronavírus.
A decisão, porém, rachou os especialistas convocados de forma extraordinária e demonstrou a dificuldade e pressões sobre um anúncio que poderia ter amplo impacto comercial e político. “Houve uma divisão dos membros”, reconheceu Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.
Mas a conclusão da OMS também foi resultado de uma ampla manobra do governo da China para evitar um constrangimento internacional. Politicamente, a declaração de emergência significaria um duro golpe contra a economia local e, em especial, contra o presidente Xi Jinping. Fontes em Genebra acreditam que, se a opção fosse por tal medida, o sinal que se mandaria ao mundo era de que Pequim não estaria sendo capaz de conter um surto, um certificado de uma falha no seu sistema de saúde.
Uma declaração de emergência antes do ano novo, no sábado passado, colocaria uma pressão doméstica ainda maior sobre o presidente e perdas enormes para Wuhan que, sozinha, tem um PIB maior que Portugal.
De fato, Xi também passou a ser alvo de críticas internas, com uma população cada vez mais preocupada se pergunta por qual motivo Pequim levou tantos dias para tomar medidas e informar que o vírus poderia se propagar entre humanos. A crise se aprofundou depois que Zhou Xianwang, o prefeito de Wuhan, alertou que não havia recebido um alerta suficientemente claro sobre os riscos da doença.
Rapidamente, reapareceram as suspeitas de que Pequim poderia não ter aprendido a lição da epidemia de Sars, em 2003. Naquele momento, a tentativa de abafar a crise levou o governo a não divulgar dados sobre a doença, que saiu do controle e acabou matando mais de 700 pessoas.
Desta vez, o compartilhamento de informação com a OMS foi mais rápido. Mas a censura dentro da China continua a ser implementada. Mesmo nas redes sociais, entrevistas sobre como houve uma tentativa de abafar casos em 2003 voltaram a ser compartilhadas. E, logo, censuradas pelo regime.
Uma ironia circulava nas redes: a China tem trens rápidos e uma das melhores telefonias do mundo. Mas o fluxo de informação continua seguindo o ritmo da pré-história.
A pressão sobre Xi Jinping vem ainda em um momento crítico para seu governo. Depois dos meses de protestos em Hong Kong e da vitória de grupos democráticos em Taiwan, uma crise sanitária teria um impacto profundo sobre o Partido Comunista.
Não por acaso, a ordem foi a de colocar máxima pressão para evitar a declaração de uma emergência global, um sinal de fragilidade do governo de Xi Jinping.
Chamado para a reunião, Pequim fez questão de pressionar o grupo, mostrando informações sobre o avanço dos casos. Mas, em sua apresentação, a China insistiu que suas ações domésticas seriam suficientes e que teria condições, sozinha, de dar uma resposta ao surto.
Enquanto a reunião ocorria, o governo surpreendeu o mundo anunciando a quarentena de uma cidade com milhões de pessoas. Nas horas seguintes, na tentativa de dar um sinal claro para a OMS, novas restrições foram impostas, atingindo um total de 20 milhões de pessoas.
Quem estava dentro da sala revelou que, diante das medidas, uma parcela dos técnicos se indagou se aquilo estava sendo feito diante de informações não reveladas de que os casos estavam se espalhando. A resposta de Pequim foi de que essa não era a explicação. Mas sim um gesto para mostrar que o governo não havia perdido controle.
Horas de espera
A OMS optou por suspender o encontro às 16.40h (horário europeu), sem saber o que fazer. Foi apenas quatro horas e meia depois e após adiar por duas horas uma coletiva de imprensa que um anúncio foi feito. Mas, para a surpresa de muitos, a entidade declarava que nada havia sido decidido e um novo encontro estava marcado para ocorrer no dia seguinte. A situação era inédita para o Comitê de Emergência da OMS.
Nas horas que se seguiram, dezenas de novas medidas foram anunciadas pelos chineses. Quando o grupo retomou a reunião, já na quinta-feira, o cenário era o de uso de militares para controlar aeroportos e estações de trem e uma dramática ação por parte de Pequim.
Assim, a emergência global não foi oficialmente declarada. Questionado, Tedros foi cauteloso sobre os chineses e insistiu que se trata de um “país soberano”. Ao ser eleito para o cargo máximo da agência de Saúde, o ex-chanceler etíope teve um cabo eleitoral fundamental: a China.
Agora, com a doença se espalhando e com 30 mil chineses sob observação, Tedros terá encontros nesta semana com as autoridades em Pequim para avaliar a crise. O vírus, eles descobriram, ignorou as considerações políticas.
Com a Informação UOL.